Alberto estava quase no final de seu plantão. Sob um sol escaldante, o agente continuava suas abordagens de rotina, numa blitz da Guarda Civil Municipal, num subúrbio do bairro da cidade. Estava exausto. Mesmo assim, aproximava-se dos veículos com cautela, verbalizava com os condutores com uma educação exemplar, que fora cultivada desde sua infância por influência de seus pais. Procurava, sempre que possível, orientar as pessoas a respeito de uma boa conduta no trânsito, e de modo geral, era recepcionado com a mesma educação que oferecia.
- Vamos encerrar a operação. Fiscalizem os últimos veículos e depois vamos embora - disse o comandante para os subordinados.
Alberto ordenou com gestos a parada de um automóvel que se aproximava. Caminhou até uma distância segura para que pudesse iniciar sua abordagem com segurança, observou o condutor através do retrovisor externo, e falou:
- Bom dia cidadão! Por favor, carteira de habilitação e documentos do veículo. O cidadão respondeu ao bom dia e ao mesmo tempo foi abrindo o porta-luvas. No meio de muitas parafernálias encontrou os documentos que Alberto havia pedido. Entregou nas mãos do agente, que conferiu e disse:
- Está quase tudo certo, exceto pelo fato de o Senhor não estar usando o cinto de segurança. - E daí - exclamou o cidadão. - Como e daí? O Senhor não sabe que está no Código de Trânsito Brasileiro em seu art. 65, que o uso do cinto de segurança é obrigatório em todo território nacional? Além do mais, num possível acidente de trânsito o Senhor pode ser lançado para fora do veículo, podendo sofrer ferimentos graves ou até mesmo morrer! - E daí seu Guarda - insistiu o cidadão. Que coisa! Exclamou consigo mesmo Alberto. Mesmo assim, manteve a postura. Respirou fundo e completou:
- O senhor está sendo notificado no art. 167 do CTB, por deixar de usar o cinto de segurança. - O que? Tu tá me ameaçando, rapaz? - Não, não estou lhe ameaçando, estou lhe notificando, o que é bem diferente. -O rapaz! Tu sabes com quem tu tá falando? Alberto já estava de “saco” cheio com aquela situação, mesmo assim respondeu a pergunta ousada daquele cidadão: - Não, não sei! Se nem mesmo você sabe quem você é, como você quer que eu saiba?
- Eu sou índio. Tu não tá vendo o penacho no banco detrás? - Estou vendo sim, mas agora quem diz e daí, sou eu! - Ah, meu filho! Tu estudaste até que série? Como foi que tu entraste pra esta corporação? Parece um burro analfabeto! - Olha o desacato cidadão! Respeita-me senão eu te prendo hein! - É bem nesse ponto que eu queria chegar seu Guarda. Tu não podes me prender, não pode fazer nada contra mim. “Porque mim ser índio”, e índio pode alegar desconhecimento de lei. Eu nem sei o que é esse tal de desacato. Afinal, nós não vivemos nessa selva de pedra que vocês vivem, nós somos regidos pelos costumes seculares de nossos ancestrais. As leis que regem vocês não regem o povo da minha aldeia. Na minha tribo a gente decide o que é melhor para cada membro baseado nas nossas tradições, advogamos em causa própria, em nossos interesses pessoais. Quando a população tenta nos colocar em pé de igualdade com os demais cidadãos, sempre encontramos uma forma de nos livrar das responsabilidades. Quando cometemos irregularidades somos julgados dentro da própria tribo, e a penalidade se materializa no máximo em uma advertência do cacique. Nós somos intocáveis e inimputáveis!
- Mas isso só vale para os índios que não estão integrados com a sociedade e vivem isolados. - Há controvérsias! - Deixa pra lá. Mas, pra quem quer se livrar de flagrante por desacato alegando desconhecimento de lei, você até que está sabendo demais! - “Poise”, a gente tem que ficar ligado nos nossos direitos, “né”! Ademais, não preciso saber de tudo, só do que me interessa pra poder salvar a minha pele. - Bem folgadinho você! Como conseguiu tirar a carteira de habilitação se é avesso às leis? - Eu sou índio, mas não sou burro! Sempre tem um jeitinho. Um dia eu te conto! Mas, diz aí? Vai me liberar, ou não vai? - Tudo bem, eu até libero o Senhor sem notificar, mas vai ter que colocar o cinto de segurança antes de sair, e se retratar pela sua má educação comigo. - Certo seu Guarda, me desculpa, eu me excedi um pouco. Já estou colocando o cinto de segurança. Eu nem sabia que existia um Código de Trânsito. É porque na minha tribo ficamos concentrados no nosso trabalho, que é, basicamente, pintar, bordar, e esquecemos do resto do mundo.
- É, mas aqui na civilização, as coisas não são como você pensa! Mas, pra encerrar o assunto, já que o Senhor está com todos os documentos em dia, e se dispõe a colocar o cinto de segurança, vai ficar por isso mesmo. Mas que sirva de aviso, se eu pegar o Senhor novamente cometendo irregularidades no trânsito ou desacatando os agentes, vou lhe notificar e lhe prender. Nem vou querer saber se você é índio, ou sei lá o que quer que seja! Estamos combinados? - Combinadíssimos!
O índio cidadão ligou o veículo, engatou a primeira marcha e quando estava arrancando o seu automóvel para ir embora, Alberto, movido pela curiosidade, lhe fez uma última pergunta: - Onde fica sua tribo?
O índio não respondeu com palavras, tirou do bolso uma carteira de identificação e entregou nas mãos de Alberto, que leu e ficou surpreendido com o que estava escrito: Nome: Juruna Rombo Estrondozo. Endereço: Câmara do Congresso Nacional - Praça dos Três Poderes- Brasília- DF Ocupação atual: Senador
Alberto ergueu a cabeça na direção do índio cidadão político, ficando face a face. O índio deu um sorrisinho sarcástico, típico dos políticos mais habilidosos, e falou:
- Nessa tribo, somos todos intocáveis.
Alberto ficou confuso com aquela situação, não sabia ao certo onde ficava a tribo daquele homem. Em Brasília, ou em algum ponto da Amazônia? Não entendia se ele dizia que em sua tribo todos eram intocáveis e inimputáveis pelo fato de serem índios, por serem políticos, ou por ambos os motivos? Alberto entrou em parafuso, ele olhava para o índio e via um político, olhava para o político e via um índio. Sua visão estava embaçada, ora ele enxergava naquele homem um índio vestido de terno e gravata, ora parecia ser um político eloquente vestido de tanga e com penacho na cabeça. No devaneio de sua mente, ficou impossível distinguir as vestes, já não sabia mais se ele estava diante do índio, ou do político; parecia tudo uma coisa só.
Autor: Maciel Brognoli - Guarda Municipal de Tubarão
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